Monday, February 24, 2014

As torturas do açúcar

Quando tanto se diz sobre os inconvenientes do consumo excessivo do açúcar é bom lembrar que, noutras épocas, este produto não só era raro e caro mas também era considerado um bendição para a humanidade. O processo de preparação do açúcar nos engenhos brasileiros foi  descrito de forma pitoresca pelo padre jesuíta italiano André João Antonii, no Cap. XII da sua obra Cultura e Opulencia do Brazil (1711):
É reparo singular dos que contemplam as cousas naturaes, ver que as que são de maior proveito ao genero humano não se reduzem á sua perfeição sem passarem primeiro por notaveis apertos: e isto se vê bem na Europa no panno de linho, no pão, no azeite e no vinho, fructos da terra tão necessarios; enterrados, arrastados, pizados, espremidos, e moidos antes de chegarem a ser perfeitamente o que são. E nós muito mais o vemos na fábrica do assucar, o qual desde o primeiro instante de se plantar, até chegar ás mezas, e passar entre os dentes a sepultar-se no estômago dos que o comem, leva uma vida cheia de taes e tantos martyrios, que os que inventaram os tyrannos lhes não ganham vantagem. Porque se a terra, obedecendo ao imperio do Creador, deu liberalmente canna, para regalar com a sua doçura aos paladares do homem; estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma canna, com seus artificios, mais de cem instrumentos, para lhe multiplicarem tormentos e penas.
Por isso primeiramente fazem em pedaços as que plantam, e as sepultam assim cortadas na terra. Mas ellas, tornando logo quasi milagrosamente a ressuscitar, o que não padecem dos que as vêem sahir com novo alento com novo alento, e vigor? Já abocanhadas de vários animaes; já pizadas das bestas; já derrubadas do vento; e enfim descabeçadas e cortadas com fouces. Sahem do cannaveal amarradas; e oh quantas vezes antes de sahirem d’ahi, são vendidas! Levam-se assim presas, ou nos carros, ou nos barcos á vista das outras, filhas da mesma terra, como os réus que vão algemados para a cadeia, ou para o logar de supplicio padecendo em si confusão, e dando a muitos terror. Chegadas á moenda, com que força e aperto, postas entre os eixos, são obrigadas a dar quanto tem de substancia? Com que desprezo se lançam seus corpos esmagados, e despedaçados ao mar? Com que impiedade se queimam sem compaixão no bagaço? Arrasta-se pelas bicas quanto humor sahiu de suas veias, e quanta substância tinham nos ossos; tratea-se, e suspende-se na guinda; vai a ferver nas caldeiras, borrifado para maior pena dos negros com decoada; feito quase lama no cocho, para fartar ás bestas e aos porcos; sahe do parol escumando, e se lhe imputa a bebedice dos borrachos. Quantas vezes o vão virando, e agitando com escumadeiras medonhas? Quantas, depois de passado por assadores, o batem com batedeiras, experimentando elle de taxo em taxo o fogo mais vehemente; ás vezes quasi queimado; e ás vezes dasafogueado algum tanto, só para que chegue a padecer mais tormentos? Crescem as bateduras nas temperas; multiplica-se a agitação com as espatulas; deixa-se esfriar como morto nas fôrmas; leva-se para a casa de purgar sem terem contra elle um mínimo indício de crime; e n’ella chora furado, e ferido, a sua tão malograda doçura. Aqui dão-lhe com barro na cara; e, para maior ludibrio, até as escravas lhe botam sobre o barro sujo as lavagens. Correm suas lagrimas por tantos rios, quantas são as bicas que as recebem: e tantas são ellas, que bastam para encher tanques profundos. Oh crueldade nunca vista! As mesmas lagrimas do innocente se põem a ferver, e a bater de novo nos taxos; as mesmas lagrimas se destillam á força do fogo em alambique; e quando mais chora sua sorte, então tornam a dar-lhe na cara com barro, e tornam as escravas a lançar-lhe em rosto as lavagens. Sahe d’esta sorte do purgatorio, e do carcere, tão alvo, como innocente; e sobre um baixo balcão se entrega a outras mulheres, para que lhes cortem os pés com facões; e estas, não contentes de lh’os cortarem, em companhia de outras escravas, armadas de toletes, folgam de lhes fazer os mesmos pés em migalhas. D’ahi passa ao ultimo theatro de seus tormentos, que é outro balcão maior e mais alto; aonde exposto a quem o queira maltratar, experimenta o furor de toda a gente sentida, e enfadada do muito que trabalhou andando atraz d’elle; e, por isso, partido com quebradores, cortado com facões, despedaçado com toletes, arrastado com rodos, pisado dos pés dos negros sem compaixão, farta a crueldade de tantos algozes, quantos são os que querem subir ao balcão. Examina-se por remate na balança do maior rigor o que pesa, depois de feito em migalhas; mas os seus tormentos gravissimos, assim como não tem conta, assim não ha quem possa bastantemente pondera-los, ou descreve-los. Cuidava eu, que, depois de reduzido elle a este estado tão lastimoso, o deixassem; mas vejo que, sepultado em uma caixa, não se fartam de o pizarem com pilões, nem de lhe darem na cara, já feita, com um páu. Pregam-no finalmente, e marcam com fogo o sepulchro, em que jaz: e assim pregado, e sepultado, torna por muitas vezes a ser vendido, e revendido, preso, confiscado e arrastado; se se livrar das prisões do porto, não se livra das tormentas do mar, nem do degredo, com imposições e tributos, tão seguro de ser comprado e vendido entre christãos, como arriscado a ser levado para Argel entre mouros. E, ainda assim, sempre doce, e vencedor de amarguras, vai a dar gosto ao paladar dos seus inimigos nos banquetes, saude nas mesinhas aos enfermos, e grandes lucros ao senhor do engenho e aos lavradores, que o perseguiram, e aos mercadores que o compraram, e o levaram degradado, nos portos; e muito maiores emolumentos á fazenda real nas alfandegas.               
(Revista de Chimica Pura e Applicada, Ano 10, Vol. X, 1914, pp. 414-416)

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